Conto: Veneno de rato
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Injuriarum remedium est oblivio / A maior vingança é o desprezo.
Veneno de rato
Numa noite chuvosa de outono, em um requintado restaurante chamado "La Cavalleria" na região nobre da cidade, Tirso se encontrava no seu limite. Durante anos, ele havia tolerado os clientes ricos e seus caprichos, engolindo cada insulto e desrespeito com um sorriso forçado. É, tudo tem um limite, e o limite de Tirso estava se aproximando rapidamente.
Tirso, um homem de quarenta e cinco anos, com olhos cansados, tinha sido um empregado dedicado e leal por mais de uma década, nunca faltara, era o primeiro a chegar e o último a sair, vestia a camisa da empresa e estava sempre pronto para realizar outras tarefas além do trabalho de garçom. No entanto, após dez anos, refletindo sobre o quanto era desvalorizado e humilhado, percebeu que sua paciência estava se esgotando.
Os clientes da "La Cavalleria", riçacos esnobes, corruptopatas, politicopatas, religiopatas, estelionatários da vida, ladrões do dinheiro do povo e outros tipos canalhas que pagavam de “cidadãos de bem” da cidade podre e corrupta, frequentemente tratavam Tirso e outros garçons com total desprezo e sadismo. Certa vez, Tirso viu um dos clientes, um político politicopata ricaço tentando abusar de Cida, a garçonete. Aquilo foi o início de sua revolta de fato. Ele reclamou com os donos do restaurante que simplesmente o ignoraram e disseram que quem deveria reclamar era a Cida e não ele. “Passaram a mão na sua bunda ou na da Cida? Vá trabalhar e para de amolar, Tirso”, disseram-lhe.
E assim, numa total desfaçatez, os dias seguiam em “La Cavalleria”, com os ricaços soberbos e lunáticos pedindo comidas e vinhos caros, passando a mão na bunda das garçonetes, fazendo comentários cruéis sobre a aparência de Tirso e outros garçons. “Parece que esses dois ali são um casal de viadinhos!”, diziam e riam os endinheirados. Era como se, para os abastados bastardos, Tirso e outros não fossem pessoas, mas apenas um bando de servos miseráveis como sombras ou fantasmas que traziam a comida e a bebida. “Salário mínimo por trabalho ao máximo”, murmurava Tirso em pensamentos.
Uma noite, enquanto servia uma mesa de clientes particularmente desagradáveis, Tirso escutou uma conversa que mudaria sua vida. Os clientes ricos riam de suas próprias piadas sujas e faziam comentários preconceituosos sobre pessoas como ele, trabalhadores árduos que estavam tentando sobreviver. Tirso, cuja paciência já estava por um fio, sentiu uma fúria crescente dentro de si, uma mistura de ódio, ressentimento e desespero.
Naquela noite, depois de terminar seu turno, Tirso não conseguiu dormir. Ele se viu à beira de um abismo, à beira de fazer algo terrível para finalmente se vingar. Mas, ao mesmo tempo, um sentimento de impotência e medo o tomavam de assalto: “Eu vou acabar em cana ou morto. Tudo bem que a minha vida não é grande merda, mas diz o ditado que ‘o ruim só é ruim enquanto o pior não acontece’”, pensava. Nisso, pegou um velho livro e ao virar as páginas para frente e para trás, imerso em pensamentos que pareciam rasgar seu cérebro, ele encontrou um enunciado que dizia assim:
[...] “Segundo a Worldometers, quase um milhão de pessoas se matam por ano em todo o Planeta. Se cada suicida resolvesse levar junto um politicopata, corruptopata, religiopata, dinheiropata, milionário-bilionário e demais estelionatários da existência, os tipos que se acham donos das cidades, Estados, Países, do Mundo e da verdade, estariam prestando um serviço glorioso para a humanidade e eu, como o ' O Homem que ri', 'O Coringa', ou o 'Tyler Durden de O Clube da Luta', os louvaria dia e noite, faria até altares para tais destemidos heróis da verdadeira existência, tocando Nirvana.” [...]. O texto maluco o tocou tão profundamente que parecia que mil demônios o possuíam. Foi quando ele teve uma ideia sombria: veneno de rato.
Nos dias seguintes, Tirso começou a pesquisar sobre veneno de rato na internet. Ele não sabia muito sobre o assunto, mas estava determinado a encontrar uma maneira de tornar sua vingança realidade. Depois de muito esforço, ele conseguiu adquirir uma pequena quantidade de veneno de rato sem chamar a atenção.
Agora, tudo o que ele precisava era de uma oportunidade. Aquela noite, com seu coração acelerado, suando frio, com raiva das humilhações e das piadinhas diárias mas também com medo de ser preso ou morto, ele adicionou uma pequena quantidade do veneno ao prato de um cliente especialmente rude. Tirso não queria causar ferimentos graves, mas sim enviar uma mensagem clara: ele não aceitaria mais ser humilhado.
O cliente começou a comer e logo mostrou sinais de desconforto. Ele começou a suar, sua face ficou pálida e ele se levantou abruptamente, agarrando sua garganta. Os outros clientes e funcionários entraram em pânico, enquanto Tirso observava disfarçadamente, misturando-se à confusão.
A ambulância foi chamada e o cliente foi levado para o hospital. Todos suspeitavam de uma intoxicação alimentar, mas ninguém poderia apontar o dedo para Tirso, pois ele tinha sido meticuloso em suas ações. “O velho corno sobreviveu. Pelo menos não vai mais voltar aqui para me encher o saco”, Tirso disse mentalmente, dois dias depois do ocorrido. Como não tinha dado nada, nenhuma investigação ocorrera, Tirso pensou: “Vou botar sempre pequenas quantidades nos pratos daqueles cornos, só o suficiente para deixá-los lesados, não matá-los”. E assim, possuído pelo desejo de vingança, ele repetiu seu plano algumas vezes ao longo das semanas seguintes, sempre com clientes sacanas como alvos.
Mas, após um tempo, a notícia se espalhou sobre os incidentes misteriosos no "La Cavalleria", e as reservas começaram a diminuir. Os clientes ricos agora tinham medo de jantar lá, e o restaurante estava prestes a fechar as portas. Tirso estava triste com a possibilidade de falência do restaurante mas, por dentro, bem lá no fundo, achava que finalmente tinha conseguido sua vingança silenciosa.
Contudo, à medida que o tempo passava, um estranho peso sombrio começou a se instalar em sua consciência. Ele começou a conjecturar que seu ato vingativo talvez não fosse a resposta. Em vez de se sentir aliviado, ele começou a se sentir ainda mais amargurado e vazio. “Eu não sou bandido, psicopata, maluco. Mas também não podia seguir sem me vingar daqueles desgraçados, que além de ficarem ricos roubando o povo, tratavam a mim e aos outros colegas como se fôssemos lixos! Eles tiveram o que mereceram!”, falava consigo na solidão da fria e precária kitnet alugada.
Então, uma noite, quando estava prestes a realizar mais um de seus planos, Tirso se viu no espelho e viu o rosto cansado e triste que o observava de volta. Ele foi ao “cantinho dos funcionários”, pegou o velho livro, começou a passar as páginas freneticamente outra vez e parou num trecho que dizia:
[...] “Todos podem mentir para si mesmos e enganar a si mesmos por muito tempo, mas ninguém, nem mesmo o mais psicopata da Terra, consegue escapar da própria consciência. Em algum momento, cedo ou tarde, a consciência vai apertar tão forte que a única saída será a verdade. A verdade sempre será mais pesada e mais brutal que a mentira, com uma única diferença: ela será libertadora.” [...]. E então, mergulhado em pensamentos que ecoavam em sua mente exausta, Tirso chegou à conclusão de que a verdadeira vingança não estava em prejudicar os outros, por mais cruéis que fossem, mas sim, em encontrar a paz dentro de si mesmo.
E assim, encurralado pela esmagadora estranha força da Consciência, Tirso decidiu parar com seu plano maligno e enfrentar as consequências de suas ações. Ele confessou tudo aos proprietários do restaurante, foi demitido imediatamente e preso. Ao entrar no carro da polícia, Tirso, porém, surpreendentemente, se sentiu um pouco mais leve, como se um fardo tivesse sido retirado de seus ombros. Havia uma mistura de “dever cumprido” e “alívio por contar a verdade”, sobretudo para si mesmo. Com o tempo, após sair da cadeia, Tirso conseguiu encontrar um novo emprego em outro Estado, numa outra cidade, num lugar mais humilde e começou a reconstruir sua vida. Ele chegou à conclusão de que a verdadeira força mental, moral e espiritual estava em “aceitar o inaceitável”, superar a raiva e, principalmente, o ressentimento, em vez de se render a eles.
A "La Cavalleria" acabou fechando as portas devido ao escândalo e Tirso nunca soube o destino dos clientes ricos que o haviam humilhado, nem dos colegas de trabalho. Contudo, estranhamente, em sua mente, ele achava que finalmente encontrou a paz que tanto buscava, dizendo a si mesmo, que deixou para trás o veneno de rato que havia consumido sua alma.
E. E-Kan
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OUTROS CONTOS:
Barosky, o solitário
Barosky, velho e solitário, saía todos os dias e caminhava sem rumo, para sentir um pouco da vida que ainda lhe restara. No fim da tarde, ele sempre acabava no supermercado. As pessoas indiferentes e a mulher do caixa 7 eram a sua única companhia. Um sorriso, um adeus, era tudo o que ele esperava. Depois, ele se sentava num dos bancos do lado de fora e ficava lá, dramaticamente imperceptível, observando as pessoas até a luz do dia se esvair na escuridão da noite solitária, só aliviada pelas luzes dos postes que se espalhavam por toda a parte.
A xícara
A xícara de café repousava solitária sobre a mesa ao ar livre. O vento sussurrava segredos, mas ninguém ouvia. A cada gole, o amargo do café se misturava à tristeza da solidão. Mas não uma solidão qualquer, uma solidão abissal, do tipo que está além do além. Enquanto o Sol se pôs e a Escuridão inevitável começara a cair sobre todos, como sempre acontece, a xícara permaneceu, testemunha silenciosa dos sonhos não compartilhados e das histórias não contadas. Ninguém mais estava lá, como sempre acontece...
'Smigol', o lixeiro
Todo dia de manhã, ele passava pela rua olhando as lixeiras, na esperança de encontrar latinhas vazias ou alguma coisa ainda comestível. A Segunda-feira era o seu dia preferido. Por causa do seu aspecto magro e sombrio, as pessoas da rua o chamavam de 'Smigol'. Seus olhos fundos e cansados revelavam a brutal desilusão acumulada ao longo dos anos. Talvez, por isso, ele revirava as sacolas dos lixos, rasgando-as e deixando tudo bagunçado, como uma espécie de revolta. Um dia, ele encontrou um bilhete enrugado, com uma mensagem de amor. Sorriu, pensando ter encontrado um motivo precioso para continuar. Mas, ao observar direito, percebeu que era apenas um pedaço de papel abandonado e ignorado, como ele. "Ridículo!", falou consigo mesmo. E como se fosse a sua última gota de fé se dissipando, ele amassou o bilhete e o jogou no chão. No fundo do seu coração descartado e pisoteado pelo mundo, sentiu como se o vazio engolisse o que restara da sua chama de vida, levando junto todas as suas expectativas e ilusões. Assim, como o bilhete jogado no lixo, depois amassado e jogado ao chão, 'Smigol', seguiu como há tempos já se sentia: só mais um fragmento que caiu do lixo da sociedade e que ficou perdido pelas ruas da vida.
E. E-Kan
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Filosofia Realista Insólita (2023)
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Livros publicados até 2022
- A última cruzada pela Liberdade antes do caos total (novembro de 2022)
- Trabalho Cerebral (Outubro de 2022)
- Vidas Fakes (Outubro de 2022)
- Filosofia Supra Realista (Agosto, 2022)
- Os três pontos de virada na vida (Agosto, 2022)
- Sobrevivendo às merdas da vida, manual prático contra o suicídio. (Agosto, 2022)
- Miscelânea Insólita - Aforismos, poesias, experiências e pensamentos (2022)
- Andarilhos Errantes (2022)
- A.C.O: Ampliação da Capacidade de Observação (2022)
- Lutando como um Leão pra não morrer como um Veado (2022)
- Do WikiLeaks a Lava Jato: a corrupção que mata (2022)
- A queda de Jamir, nunca Rei do Gadistão (2022)
- João Thomaz e Panda: duas crônicas insólitas (2021)
- Teoria da Humanidade Zero (2021)
- As Redes Umbrais Sociais (2021)
- Raul Seixas & A Filosofia. A Arte de Ser um Maluco Beleza (2019)
- Como os ricos corruptopatas e os políticos politicopatas roubam impunemente? (2019)
- Consciencialismo Realista (2019)
- Diabo mulher (2018)
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