João Thomaz: das portas da morte ao recomeço


 
História baseada em fatos reais

___ 

JOÃO THOMAZ: DAS PORTAS DA MORTE AO RECOMEÇO

Sinopse: Após perder a esposa e a filha para a COVID-19, sem nenhuma esperança na vida, João Thomaz se vê com uma faca dentro da manga da jaqueta surrada, prestes a matar e se matar. O que a vida reservara para ele na sinuca de bico da existência?

"O ser humano gosta de pensar que está no controle de sua vida. Eu tenho uma teoria sobre o porquê as pessoas fazem coisas terríveis. É a mesma razão pela qual as crianças se empurram no pátio da escola. Se é você quem está empurrando, então não vai ser aquele que é empurrado. Se você é o monstro, nada vai estar esperando nas sombras para pular em cima de você. É muito simples: as pessoas fazem as coisas terríveis que fazem, por medo. E também para elas é melhor ser um monstro,pois na esquina nenhuma força das trevas estará contra você". (Allie, Série Taken, de Steven Spielberg). 

A história de João Thomaz

Como já fazia há vários meses, João Thomaz acordou bem cedo, vestiu a velha roupa surrada, calçou seu tênis velho, meio rasgado, deu comida para os cachorros, Nínive e Tigre, dois Vira-latas com quem dividia sua tragédia existencial e sua solidão após a esposa e a filha morrerem de COVID-19, meses atrás.

Apesar de tudo, ele ainda lutava, vivia de bicos e embora tivesse vários anos de experiência como auxiliar de escitório não achava ocupação em lugar algum, talvez por causa da idade, talvez porque fosse negro, talvez por ser pobre, talvez fosse a sua roupa surrada, talvez por morar num bairro distante ou talvez porque não iam com a sua cara.

Mesmo assim, todos os dias ele ia a pé até o centro da cidade à procura de um emprego. Seu trajeto era o mesmo de sempre, ele ia em direção à Agência do Trabalhador, mas por onde passava deixava seu currículo onde podia. Na saída da casa simples, no portão, sempre havia várias correspondências de cobranças de contas de luz, água e boletos atrasados que João Thomaz ignorava, afinal não havia muita coisa que ele pudesse fazer.

João saía bem cedo e a sua via crucis durava pelo menos duas horas até a Agência do Trabalhador, que o povo apelidava de “Agência do Vereador”, já que ela só era usada para a politicagem mais cara de pau que existe. A Agência sempre estava lotada de outras almas à beira do precipício da vida, a maioria na mesma condição de João Thomaz ou até pior. Apesar do grande número de nomes de vagas fixadas no velho mural na entrada, quase nunca tinha vaga para nada. Era sempre uma tremenda sacanagem.

Faziam as pessoas já desesperadas gastar os últimos trocados para pegar o ônibus, amanhecer na fila da Agência, para pegar uma senha, para ver se tinha uma daquelas vagas anunciadas e após várias horas de espera, diante de um atendente sádico, as pessoas ouviam que não tinha a 'vaga pretendida'.

Alguns atendentes, menos sádicos, até verificavam se tinha alguma outra vaga por mais porcaria que fosse, mas a maioria nem se dava ao trabalho e quase sempre olhando com a cara mais cínica que existe, até rindo, devolviam a Carteira de Trabalho e diziam ao pobre diabo que se quisesse ver outra vaga, deveria pegar outra senha, aguardar a vez novamente e aí então verificar.

Sim, já teve gente que surtou, xingou, quebrou cadeira, computador, mas no final acabou indo em cana e levando socos e pontapés dos jagunços disfarçados de segurança e da Guarda Municipal. É, para defender seu ganha pão, alguns que são do povo e igualmente ferrados, batem no povo. 

Toda revolta sempre acabava assim na Agência do Vereador, ops, do Trabalhador, onde a politicaria era escancarada. O povão denunciava mas ninguém fazia nada e dizia que ali estava claro público e notório que haviam favorecimentos a parentes de políticos, amigos de políticos, conhecidos de políticos, cabos eleitorais de políticos, puxa sacos de políticos, amantes de políticos, esse tipo de caterva em geral.

João Thomaz, que já nem ligava mais para tudo aquilo, mas que ainda esperava encontrar uma vaga de emprego qualquer que fosse, por mais porcaria que fosse, pelo menos podia tomar um café quase sempre sem açúcar e um mini pedaço de pão que os politiqueiros deixavam para os 100 primeiros que chegassem todos os dias. Na época de eleição, eles deixavam pão com mortadela e do lado do café sempre tinha uma mocinha ou uma velhinha entregando santinhos do chefe da Agência, na surdina.

Naquele dia, João Thomaz se sentia meio estranho. Ficava lembrando de um sonho maluco que teve no qual as pessoas tinham surtado e estavam quebrando tudo pela cidade. Várias delas tinham invadido a Prefeitura, a Câmara e botado fogo. ‘Anarquia e caos até os ossos’, por toda a parte, era o louco sonho que sonhara.

Ele comeu o pedaço de pão, tomou o minúsculo copinho de café e se sentou à espera de sua senha que era a de número 101. No fundo, João sabia que aquela espera era totalmente inútil mas ele não tinha para onde ir, nem o que fazer e achava que só lhe restava ter alguma esperança por mais idiota e vazia que fosse.

Sentado do lado de um pilar, bem no fundão, na parede ao lado tinha uma pequena estante, dessas que sempre tem por todas as repartições públicas, com livros velhos, revistas amassadas e jornais do mês passado.

Já que tinha tempo de sobra, João Thomaz passou a vista e notou um pequeno livreto, todo remendado de durex. O nome do livro totalmente 'trash' era: "Carta aos ricos e aos políticos gananciosos e corruptos". O livreto era de um professor da cidade, muito conhecido nos bares e que já havia morrido de tanto beber. ‘Cirrose Hepática por excesso de cachaça’, foi a causa de sua morte. Curiosamente, ao lado do livreto pego pelo JT, tinha uma revista do Drauzio Varella falando sobre Cirrose por cachaça, com perguntas e respostas. Numa das respostas, o médico da Globo dizia: “Já existe uma estimativa de que um indivíduo pode desenvolver cirrose hepática se beber 80 gramas de álcool por dia, durante aproximadamente 10 anos. A mulher, que é mais sensível, corre o mesmo risco com metade dessa dose”. 

João pensava e dizia mentalmente: ‘se for assim, não tenho mais fígado então! Tudo mata, até a vida mata! Como diz certa música: “eu bebo sim e tô vivendo, tem gente que não bebe e tá morrendo”. Seja como for, a morte vai nos pegar à qualquer momento mesmo, então, foda-se!’.

Após aquele desolador momento de prosa com o próprio cérebro, João pegou o livro do professor que morreu de pinga, olhou-o e pensou: ‘temos muito tempo mesmo’. Era um texto curto, quase uma crônica, no máximo umas 30 páginas. O livro começava com a citação feita por Bobby Kennedy no dia do assassinato de Martin Luther King em 4 de Abril de 1968. João lia atentamente o texto que dizia:

[...] No dia do covarde assassinato do inigualável Dr. King, Bobby Kennedy, irmão do Presidente dos EUA, John F. Kennedy, também covardemente assassinado em 23 de Novembro de 1963, por Lee Harvey Oswald, Bobby, que estava prestes a fazer um discurso eleitoral em Indianápolis, e que foi pego de surpresa por aquele hediondo crime, discursou dizendo: "Eu trago uma notícia triste para vocês, para todos nós e acredito que para todos os cidadãos dos EUA, e para os amantes da Paz em todo o mundo. A notícia é que, Martin Luther King, foi baleado e morto hoje à noite em Mênfis, Tennessee. Martin Luther King dedicou a sua vida ao amor e à justiça entre os seres humanos. Ele morreu por causa dessa luta. Para Aqueles dentre vocês, que são negros, e estão tentados a se deixarem preencher por ódio e desconfiança, por conta da injustiça de tal ato, contra todos os brancos, eu diria que também tenho em meu coração o mesmo sentimento. Um familiar meu foi assassinado mas foi morto por um homem branco. Meu poeta preferido é Ésquilo. Ele escreveu uma vez: "Até mesmo quando dormimos, a dor que não pode esquecer, cai gota a gota no coração, até que em nosso próprio 'desespero', contra a nossa vontade, venha a sabedoria através da terrível Graça de Deus". O que precisamos nos EUA não é divisão. O que precisamos nos EUA não é de ódio, o que precisamos nos EUA não é violência e desordem, mas sim amor, e sabedoria, e compaixão pelos outros. E um sentimento de Justiça para aqueles que ainda sofrem em nosso País, quer sejam brancos ou negros".

Bobby também seria covardemente assassinado meses depois, no dia 5 de Junho de 1968 às 12:15, no Hotel Ambassador, com 3 tiros disparados por um Palestino chamado Sirhan Sirhan, logo após Bobby ter vencido as Primárias à Presidência dos EUA pelos Democratas na Califórnia [...].

João Thomaz leu aquilo e lembrou de um trecho de uma série sobre Bobby Kennedy onde uma pessoa ao ser entrevistada na época, após o assassinato de Bobby, disse ao repórter:

"É inacreditável! Sempre que tem alguém querendo fazer a coisa certa pelas pessoas, principalmente pelos mais pobres, algo muito ruim acontece com elas. Mataram o irmão dele, que era Presidente dos EUA em 1963, assassinaram o Dr King poucos meses atrás e agora mataram Bobby. Esse mundo não tem mais esperança", disse o homem. 

João, que já tinha perdido a esposa e a filha para a COVID-19, que estava ali sentado esperando o lento passar dos números até o 101, não podia deixar de concordar com o que aquele pequeno livreto estava expondo sobre a história, especialmente, sobre a parte que dizia: 'Esse mundo não tem mais esperança".

Entretido com o livreto, como se tivesse sido tirado do corpo físico, nem ligava para as pessoas que sentavam ao lado, quase que grudadas nele, em plena Pandemia, com centenas ainda morrendo de COVID-19 todos os dias pelo Brasil. Talvez, João não se importasse mais com a morte. Virando as páginas do livro como virava as páginas da vida, lentamente, ele se deteve em umas citações de Alice no País das Maravilhas.

Eram elas:

"Quando acordei hoje de manhã, eu sabia quem eu era, mas acho que já mudei muitas vezes desde então".

“Não posso voltar para o ontem porque lá eu era outra pessoa”.

Por um breve momento, uma certa tristeza tomou conta de João Thomaz. Ao mesmo tempo, como em todas as horas do dia, ele imaginava como poderia ser bom voltar para o ontem, isto é, viajar no tempo. Voltar há alguns meses atrás e tentar evitar a morte de seus entes queridos.

Isso seria possível? Era Impossível? Qual era o destino? O destino delas já estava traçado, como o destino de milhares de pessoas? Ou tudo isso poderia ter sido evitado se politicopatas, psicopatas, assassinos, corruptopatas, desgraçados, malditos e ignorantes não estivessem no Poder incitando as pessoas a se descuidarem numa Pandemia mortal, empurrando todos ao abismo? Como uma única pessoa poderia, mesmo que voltasse no tempo, salvar seus entes queridos e a todos e mudar o curso da história?

O som da senha toca alto e o traz de volta para a realidade, 58 era o número chamado. O de João Thomaz é o longínquo 101. E enquanto os números iam sendo chamados à passos de lesma, João foi ao banheiro sujo e fedido, sem água na privada entupida, como ocorre em quase todos os setores públicos no Brasil.

No chiqueiro apelidado de banheiro, os mesmos rabiscos de sempre nas paredes: frases sem nexo, telefone de alguém oferecendo o corpo por dinheiro, loucuras em geral e um poema que chamou a sua atenção.

Na parede amarela, já desbotada, o escritor de privada suja deixou escrito o seguinte:

[...]  ""Poemas Rabiscados"

Agora estamos aqui

Não sei por que, nos deixamos levar

Às vezes me divirto, cortando a grama de casa

Às vezes me encontro, me perdendo no jardim

Em meio aos espinhos

Em meio às flores

Em meio aos insetos

Em meio aos tocos de cigarro

Que você jogou da tua boca

Agora, ainda estou aqui

Às vezes me divirto lendo coisas antigas

Às vezes me encontro no espelho de um banheiro público

Em meio ao lixo

Em meio aos odores

Em meio aos fungos

Em meio aos rabiscos nas paredes

Que alguém deixou como um último recado..." [...]

João Thomaz sorriu mentalmente e repetiu as duas últimas frases: "em meio aos rabiscos nas paredes, que alguém deixou como um último recado".

E voltou ao lugar onde estava e viu que muitas pessoas já tinham vazado, indo embora, desistido. Numa cadeira próxima, sentou uma mulher que aparentava ter quase a sua mesma idade, algo por volta dos 45 anos. O número chamado era 65. Só tinha dois guichês atendendo.

A mulher olhou para João e perguntou se ele queria outra senha que alguém tinha abandonado, o número era 89. João agradeceu, mas deixou pra lá. A mulher ficou sem entender a recusa de João e nem tentou puxar conversa. João não tinha para onde ir mesmo e o livreto estava quase chegando ao fim. 

Entre senhas chamadas e páginas viradas, ele foi lendo aquele texto com uma história maluca, com citações como a de Bobby Kennedy, Alice no País das Maravilhas, e que também contava uma história parecida com a dele. Nela, o autor do livreto, narra uma história de indignação, de revolta, de um homem em busca de justiça social, na qual, no fim, o personagem escrevia uma "carta aos ricos e políticos gananciosos e corruptos", e esse era o nome do livreto que João Thomaz estava lendo.

A carta no livro e que dava nome ao livro, era um misto sinistro de loucura, terror, desabafo e um Adeus já que o personagem do livro comete suicídio se jogando na frente de um Trem no final. Nela, o personagem dizia:

[...] "Carta aberta aos ricos e políticos gananciosos e corruptos

Com sua ganância, corrupção e desumanidade. Vocês tiraram tudo de nós. Nossos familiares, nossos amigos, nossos empregos, nossos sonhos, nossas noites de sono, nossa sanidade, nossos sorrisos, nossa fé, nossa esperança, nossa alegria e a nossa vontade de viver! Agora que não temos mais nada a perder, vamos fazer justiça por todos os que vocês mataram, prejudicaram e destruíram. Nós somos muitos e estamos em todos os lugares. Estamos  fazendo a sua refeição de manhã, meio dia e à noite, nas suas casas, nos restaurantes que frequentam e até na refeição de suas crianças nas escolas caras e os lanches  dos seus filhos promissores nas Universidades. O que nos impede de botar veneno de rato em suas comidas? Nós estamos nos postos de combustíveis onde vocês abastecem seus carrões! O que nos impede de anotar a placa dos seus carrões e passar a bandidos que adorariam sequestrá-los, assaltá-los e  executá-los?  Nós estamos nas clínicas caríssimas onde vocês consultam ou mudam suas caras, bundas e seios. O que nos impede de invadir essas clínicas sorrateiramente e antes de suas sessões de aplicação mudar os medicamentos para doses erradas e assim ferrar com seus rostos e seus corpos? Nós estamos nos seus celulares, computadores, nos seus modems, vendo seus e-mails, suas redes sociais e  os sites que vocês frequentam. O que nos impede de mostrar a todos as suas caras de pervertidos e os sites que vocês acessam? Nós estamos em toda parte, coletando seu lixo, limpando sua latrina, cortando seu cabelo, lavando seus carros, preparando suas refeições, passeando com os seus cachorros, varrendo as ruas, na feira lhe vendendo queijo, cuidando de suas crianças,  prendendo bandidos, rezando suas missas, na sarjeta pelas praças da cidade se drogando, dirigindo um caminhão, pilotando um avião, na fila do supermercado, na mesa ao lado no bar ou no café, na recepção do hotel e do motel, no trânsito parado, na  cama deitado a seu lado, num laboratório com um monte de vírus na China ou na Europa, na Casa Branca do lado da chave de um monte de míssil nuclear, na estação espacial ou nos centros de observação, do lado daqueles que podem não avisar a aproximação de um meteoro ou de uma grande rajada de massa solar, nós estamos em todo lugar, caminhando no parque ou na praia num belo dia de sol, vagando pela noite, segurando uma faca, uma arma de fogo, uma ferramenta que pode ser usada como arma ou atrás de um volante, embriagado. Nós somos os espíritos e as vozes daqueles que vocês destruíram e mataram com sua ganância e corrupção. Nós somos as vozes que farão vocês e os seus próximos surtarem. Nós somos as vozes que farão os loucos que cruzarem seus caminhos, atirarem em vocês, nós somos as vozes que dirão aos nóias da rua para os esfaquearem enquanto andam de bike, nós somos as vozes que dirão para a empregada tratada pior que cachorro, assediada e abusada botar, veneno na sua comida. Nós somos as vozes que farão os traficantes colocarem venenos nas drogas dos seus filhos mimados, patricinhas e playboys, que só lhes dão desgosto mas que vocês, iludidos, acham que lhes parecem promissores. Nós surgiremos quando menos vocês  esperarem, sob a luz do sol, quando estiverem se sentindo felizes, seguros, intocáveis, curtindo com dinheiro roubado do povo numa praia ou parado no carro no trânsito, prestes a serem engavetados. À noite, quando vocês estiverem dormindo, invadiremos vossas mentes e almas e faremos vocês terem os piores pesadelos. Nós torturaremos vocês, atiraremos em vocês e os esfaquearemos em sonhos. Nós somos as vozes dos que foram mortos, destruídos e prejudicados por sua ganância e corrupção. Nós os deixaremos loucos, desesperados, suicidas, nós os aterrorizaremos, depois pegaremos aqueles que vocês amam, e por último nós os pegaremos. Até esse momento derradeiro, veremos vocês, gananciosos e corruptos, que se achavam intocáveis, acima de todas as leis, até mesmo da lei Kármica, perderem o sorriso, a fé,  a esperança e a vontade de viver. E antes que algum terrorista os explodam, ou um lunático puxe o gatilho e exploda suas cabeças ou um nóia qualquer lhes acertem várias facadas, vocês saberão como nós nos sentimos e entenderão que tudo tem consequências. Vocês sabem que tudo poderia ser diferente se vocês não fossem podres de mente e de alma, gananciosos, desumanos e corruptos. Nós somos o vosso Karma, o equilíbrio da equação, a centelha da justiça cósmica, os vingadores, as vozes dos que se foram antes do tempo por causa de suas ações malignas. Nós somos legião e somos muitos. Estamos em todos os lugares, mais perto do que vocês possam imaginar e, cedo ou tarde, nós vamos pegá-los!   Estamos a caminho!

Assinado: As vozes dos injustiçados, O Karma vivo, A Legião das Sombras". [...]

João Thomaz leu aquilo e ficou arrepiado, assustado, inquieto e se perguntando: que tipo de mente poderia ter escrito uma insanidade como aquela? Mas, ele também sabia que alguma coisa sinistra, poderosa se apossou de sua mente e sua alma já detonadas. Muitas perguntas sem respostas, muita revolta reprimida, muita tristeza silenciada. Um vulcão estava prestes a entrar em erupção? Ao final do livreto, João observara, algo mais sinistro ainda, que o personagem que escrevera a carta no livro, chamado Sansão, que tinha resolvido se suicidar de maneira brutal se jogando na frente do trem, acreditava que assim morrendo teria, como que num sacrifício, lá no além, teria apoio de espíritos antigos fortes para empreender sua revolta contra os ricos e os políticos corruptos, fazendo aquilo que descrevera na carta sombria, ou seja, influenciando e incitando à loucura, à depressão, ao suicídio e todo tipo de tragédia os que ele julgava ser responsáveis por todas as tragédias humanas do povão, os ricos e os políticos corruptos. 

Entre pensamentos difusos e reflexões sobre o que tinha acabado de ler, João percebeu que o seu número, 101, chegou. Ele foi e recebeu a mesma resposta de sempre: 'não tem vaga para o seu perfil'.

João Thomaz, ébrio e atordoado de pensamentos, foi embora, sem discutir.

Seria justo que poucos tivessem muito dinheiro e tudo do bom e do melhor, inclusive os melhores hospitais e tratamentos? Enquanto milhares morriam nos hospitais públicos abarrotados, especialmente na Pandemia, quase sempre faltando medicamentos, com médicos e enfermeiros exaustos, sobrecarregados? É justo que parentes, amigos e puxa sacos de políticos tenham preferência e sejam favorecidos em vagas de trabalho na Agência do Trabalhador? É justo que 1% dos humanos detenham 99% das riquezas de todo o Planeta? É Justo que grandes filhos da puta, que só fazem mal para o povo, estejam por aí 'vivinhos da Silva', com grana e poder, já ricos e ainda assim roubando o povo mais ainda, atrasando a vida das pessoas enquanto pessoas boas e inocentes como sua esposa e filha estejam mortas, como milhares de pessoas pelo País? É justo que grandes desgraçados ricos corruptopatas e políticos politicopatas vivam de boas, impunemente? Se perguntava mentalmente, João Thomaz, enquanto gastava a sola do velho tênis de volta até a casa no bairro distante.

Chegando em casa, a luz cortada. Sem dinheiro pra pagar os meses atrasados para religar. Os cachorros sem ração e o dono da mercearia já não lhe vendia mais fiado por que a conta 'já estava alta' e ele sabia que João Thomaz estava desempregado, fodido na vida.

Um desejo pofundo de se matar tomou conta da mente de João. Mas, estranhamente, ele resolveu não pensar muito nisso e foi fazer o arroz e o macarrão que ainda tinha e dividiu com os cachorros que o olhavam com aqueles olhinhos tristes, abanando o rabinho, sabendo, com a lealdade, o companheirismo e a sabedoria de todos os bichos deste mundo, que no fundo, o coitado do João Thomaz tentava sair daquela situação horrível e que ele era uma pessoa boa, de um grande coração que, infelizmente, teve azar na vida, apesar de se esforçar para viver dignamente.

João olhava para os cachorros e chorava copiosamente. ‘Que farei desta minha desgraçada vida?’, se perguntava.

Os bichos, com a compaixão mais pura que há em todos os seres puros desse mundo, se aproximavam de João e o lambiam, botando uma das patinhas sobre seus braços, como que dizendo: 'força João!'.

Profundamente triste. João foi dormir.

No dia seguinte, a mesma via sacra se apresentava. No entanto, João escreveu num papel:

"Por favor, quem encontrar esse recado, já saberá que estou morto. Eu tentei, mas não consigo mais. Por favor, ajudem a Nínive e o Tigre porque nem comida eu consigo mais comprar para eles e não aguento mais voltar para esta casa e ver eles sofrendo com fome, e não poderia soltá-los para as ruas. Essa é a merda que sou. Enfim, já perdi tudo. Meu tempo aqui, pelo visto acabou. Só me resta encarar a realidade que é puxar a tomada e me desligar desta vida, na esperança que um dia renasça numa situação melhor e possa fazer mais coisas por mim, pelos bichos e pelas pessoas à minha volta. Adeus e obrigado! Quem encontrar esse recado pode ficar com essa casa. Apenas cuide da Nínive e do Tigre por mim! Fiquem bem!".

João Thomaz escreveu, chorou, fumou um cigarro, olhou para as árvores, para o céu, calçou o velho tênis, pegou uma faca, a afiou e foi para a Agência do Trabalhador.

Na mente, matar o chefe da Agência e se matar. "Pelo menos levo um desses desgraçados comigo", dizia mentalmente.

À medida que caminhava, João Thomaz via as pessoas, os bichos nas ruas, olhava para o céu, via os pássaros, observava o movimento das pessoas, dos carros, das coisas e tentava se convencer de que o que faria 'não era certo mas necessário'.

Ao chegar na Agência, João fez a mesma coisa de sempre, pegou uma senha, tomou café, comeu o pão com mortadela. Já era época de eleição. E João pensou: espero o desgraçado chegar, espero ele entrar na sala, chego lá como quem não quer nada, fecho a porta, meto umas facadas no pescoço dele e depois me mato cortando minha garganta.    

Dito e feito, o chefe politiqueiro da Agência chegou e foi pra sala. João ficou esperando as pessoas saírem. Ele esperou, esperou, esperou um tempão.

Quando viu a oportunidade, foi em direção à sala. Mas, suando frio, primeiro entrou no banheiro sujo de sempre. Com a faca afiada, olhou pro pedaço de espelho quebrado, pensou na esposa e na filha, no olhar triste de Nínive e do Tigre, na luz cortada, na injustiça do mundo, nos políticos e ricos corruptos, no livro maluco, na carta sinistra do livro, nas justificativas que inventou para si, se preparou e tomou coragem. "É agora! Chegou a hora do Adeus", disse para si mesmo. João olhou novamente para o pedaço de espelho quebrado e falou: 'desculpem! Me perdoem, talvez um dia eu as reencontrarei!'. E saiu com a faca escondida dentro da manga da velha jaqueta.

Ao abrir a porta do banheiro, um homem que esperava a vez o viu suando frio, de máscara contra a COVID-19, com olhos profundos, marejados. A mente de João não estava mais ali naquele mundo. Ele passou pelo homem como se ele não existisse e chegou à sala do chefe da Agência.

Entrou rapidamente pela porta, o chefe da Agência estava no telefone. João o visualizou, suava frio. Passou os dedos na ponta da faca que estava dentro da manga e só dizia a si mesmo mentalmente: 'é agora, é agora, é agora'.

Quando deu um passo para trás, pegando na maçaneta da porta para fechar a sala e cometer o assassinato, o chefe da Agência disse a ele: você já faz tempo que vem aqui não é? Eu tenho te observado! João suando frio e pego de surpresa responde que sim. Que faz meses que vem em busca de algo.

O chefe da Agência diz: cara, eu tenho uma coisa para você. Só não fala nada pra ninguém porque senão vai dar B.O pra mim. Senta aí.

Desnorteado, João senta, com a faca debaixo da manga. Suando frio. E o chefe da Agência pede seu currículo. João o entrega. O sujeito vê e diz: porra, você tem tudo isso de experiência? E ninguém viu se tinha alguma coisa pra você todo esse tempo? João responde: 'pois é'.

Ainda aturdido, João escuta o cara falar, falar e falar enquanto passa os dedos na ponta da lâmina, ainda com a intenção de matar e se matar.

E, inesperadamente, o cara lhe oferece um emprego de auxiliar de manutenção do prédio da Agência. João sente como se tivesse levado uma paulada na cabeça. 

O quê? Como assim? E um monte de vozes explodem na cabeça de João: mata ele porra! Vai meu! Já acabou pra você nessa merda de mundo! Vai ficar fazendo o que aqui sozinho? Meta a faca nesse desgraçado! Vai!!! E uma porrada de coisas e memórias se passam rapidamente ao mesmo tempo na cabeça de João Thomaz.

Mas, porém, subitamente, João volta a si, à realidade e aceita a proposta no ato, de súbito, sem reação.

Diante da vida e da morte, da desgraça total, da falência total, do fim iminente, da tragédia que estava prestes a acontecer, um raio de luz toca a vida de João Thomaz. E ele conta um pouco de sua história e de suas perdas. O chefe da Agência, embora um politiqueiro daquele naipe que todos já conhecem, inexplicavelmente, se comove em demasia com João e lhe dá uma grana para pagar a luz atrasada, pagar a mercearia e conseguir comida para si e para os únicos familiares que ele tinha nesse mundo: Nínive e Tigre e que para eles voltaria em breve.

Completamente desnorteado, com a faca na manga da jaqueta velha, João Thomaz agradeceu ao chefe da Agência que pediu que ele estivesse na Segunda às 7 da manhã para começar o trabalho.

E assim se deu. João recomeçou. Dos portais da morte e da desgraça, para a vida que segue, com os bons amigos de quatro patas, aguentando o que já passou, o que se passa e o que passará.  

Um mês depois, já trabalhando na Agência, João foi até a sala do chefe e viu uma mulher, parecia gente boa. Estava sentada na mesa do homem que lhe abriu uma porta. João perguntou: e o chefe? A mulher lhe respondeu. Você não soube? Ele teve COVID, foi para a UTI, não resistiu e infelizmente morreu no final de semana. Foda demais. Mas, ‘é vida que segue’.

João ficou atônito, sem palavras. A nova chefe disse-lhe: você é o João Thomaz, né? Sim sou, respondeu. O Rodrigo, o falecido Rodrigo, disse que via potencial em você, não sei porque ele te ajudou, ele não era muito de ajudar ninguém fora da panelinha sabe? E eu vi teu currículo e já falei com o pessoal de cima, na segunda você começa sua nova função, como atendente, lá na frente à princípio, depois vamos treiná-lo nos guichês. Tudo bem?   

João Thomaz, sem palavras, mudo, tremendamente surpreso. Da perda de tudo, da esperança, da fé no mundo e nas pessoas, saído diante dos portais da morte, da desgraça, da tragédia, dos trancos aos barrancos, recomeçou.

Naquele mesmo dia, ele pegou o livreto, pegou o trecho do livreto sobre o Bobby Kennedy com a citação dele com a frase de Ésquilo, a reescreveu num papel e resolveu carregá-la e lê-la todos os dias, na hora em que acorda e na hora em que vai dormir, para Nínive e o Tigre, nos túmulos da esposa, da filha e do chefe da Agência sempre que pode ir ao cemitério, geralmente aos domingos.

E toda vez que João Thomaz lê o trecho do livreto que reescreveu, falando com seus mortos ou falando com as pessoas que começaram a fazer parte de sua estrada evolutiva, ele cita a sua própria readaptação do discurso do Bobby Kennedy:

"Bobby Kennedy disse no dia da Morte de Martin Luther King em 4 de Abril de 1968, para uma multidão desnorteada e incrédula com a notícia do covarde assassinato: Martin Luther King dedicou a sua vida ao amor e à justiça entre os seres humanos. Ele morreu por causa dessa luta. Para Aqueles dentre vocês, que são negros, e estão tentados a se deixarem preencher por ódio e desconfiança, por conta da injustiça de tal ato, contra todos os brancos, eu diria que também tenho em meu coração o mesmo sentimento. Um familiar meu foi assassinado mas foi morto por um homem branco. Meu poeta preferido é Ésquilo. Ele escreveu uma vez: "Até mesmo quando dormimos, a dor que não pode esquecer, cai gota a gota no coração, até que em nosso próprio 'desespero', contra a nossa vontade, venha a sabedoria através da terrível Graça de Deus".

O que precisamos nesse mundo não é divisão. O que precisamos nesse mundo não é de ódio, o que precisamos nesse mundo não é violência e desordem, mas sim amor,  sabedoria e compaixão pelos outros, sobretudo, em respeito à memória de nossos entes amados que já partiram. E um sentimento de Justiça para aqueles que ainda sofrem nesse nosso mundo, quer sejam brancos ou negros", lia João diante dos túmulos quase todo os domingos.

Texto de Emerson E-Kan - Autor Realista, Editor de Mídias, 12 livros publicados, + de 20 anos na estrada.


- Blog Realismologia

Contato com o autor para palestras, sugestões, pedidos, troca de ideias, livros e outras questões via E-mail: grupokzcontato@yahoo.com.br  

REDES SOCIAIS: https://linktr.ee/emersonXIIILC

LIVROS DE EMERSON E-KAN: https://clubedeautores.com.br/livros/autores/emerson-rodrigues


TWITTER: https://twitter.com/EmersonXIIILC





Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Conto: Veneno de rato

Panda e os 'home' da luz

A Recrutadora Sádica - RH do Ódio