Carta de suicídio de um jogador de sinuca
Morrer, troço foda. Não é? Mas vai acontecer, de novo, à qualquer momento.
Já pensou na tua morte? Como, quando e onde ela virá?
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CARTA DE SUICÍDIO DE UM JOGADOR DE SINUCA
Descrevo abaixo, uma carta deixada por um suposto simplório jogador de sinuca.Sim! Ou acham que só gente importante e chique se mata?
A carta
"Já faz tempo que me sinto esquisito e apesar da boa vontade de umas pouquíssimas pessoas, a cada dia me sinto mais sem vontade de viver. Nem a cachaça e o ovo azedo do bar do Tigre me fazem sair dessa deprê. Tem madrugadas que saio caminhando pelas ruas imundas do centro da cidade nojenta e passo por meio da cracolândia, na esperança de um nóia ou um bandido, ou um bandido nóia me assaltar, me dar um tiro ou uma facada mas nem isso me ocorre. Parece que a vida está determinada a me sacanear.
Sem mulher, filhos, cachorro, gato ou passarinho. Para alguns, isso soaria como acertar na loteria. Mas, para mim, soa estranhamente triste. Amigos? Sem chance. Só uns filhos da puta que enchem o cu de pinga nas minhas costas, me dão tapinhas nas costas e fazem piadinhas sem nenhuma graça como se fossem gênios do Stand Up Comedy. No entanto, deixo passar, porque por pouco que seja, distraio a minha mente com o tranqueiras, igualmente ignorados pela sociedade fake, nas poucas horas de uma singela diversão no único lugar do mundo que ainda posso sentir um pingo de vida, o bar do Tigre.
Mas, depois que o Tigre baixa as portas, volto para essa vazia, fria e obscura kitnet, deito no colchão de roupa e tudo, ligo a velha TV e vejo as notícias. Só de ver a cara de bosta das merdas dos políticos ladrões e cínicos criando leis absurdas para censurar e proibir o povo de chamar ladrão de ladrão, me dá vontade me matar num instante ou ir até o Congresso feito Homem-bomba e levar uma caralhada de desgraçados junto comigo para o inferno, se existir um inferno. Mas, após refletir por um breve momento, constato que o povo, o povão, está cagando e andando para si mesmo e por isso vive na merda. Quer dizer, o povo que não tem coragem de reagir contra as safadezas e ladroagens dos políticos, mas, no entanto, é machão contra os seus iguais, pobres, despossuídos, mendigos, nóias, negros, mulheres, velhos, miseráveis em geral e, principalmente, a parte do povo que idolatra os políticos ladrões, merece isso tudo, toda a desgraça que cai sobre as suas cabeças ocas, o abismo social, as injustiças, as misérias e os abusos criminosos. Ser mártir de um povo burro e sangue de barata como esse, dessa República de Macunaímas? Que piada! Melhor morrer por nada do que por um povo que não quer saber de merda nenhuma.
E assim, sigo refletindo...43 anos de uma vida de merda, só cagadas, só decepção, só falência, nada de novo, nada conquistado, nada superado, sempre foi a mesma desgraça de vida. Mas não é por causa da cara de bosta dos malditos políticos dessa merda de País que decidi dar cabo dessa "vidona de Rei Zé Ninguém falido". É porque não vejo mais sentido em nada, nada mais têm sentido, tudo já passou, tudo se perdeu, o tempo acabou, a vida se esvaiu, acabou-se tudo. Não há mais nada ao que se apegar ou se iludir. "Todas as jogadas já foram feitas e você perdeu". Como diria Albert Camus: [...] "Amanhã, tudo vai mudar, amanhã. De repente, ele descobre que amanhã será igual, e depois de amanhã, e todos os outros dias. E essa irremediável descoberta o esmaga. São ideias semelhantes que nos fazem morrer. Por não conseguir suportá-las, as pessoas se matam – ou, quando se é jovem, fazem-se frases sobre elas”. [...]*
Me mato, porque não aguento mais essa solidão e já me sinto velho demais para novas relações e amizades. Quem, de mente sã, de alma ainda mais ou menos intacta, em sã consciência iria fazer amizade com um pedreiro de 43 anos, pinguço, falido, fodido e mal pago, "jogador de sinuca nº 1 do bar do Tigre?". Só por Deus! Talvez nem eu faria amizade com um inútil como eu.
Aliás, muitas pessoas acham que porque sou pedreiro e jogador de sinuca de um boteco qualquer, não tenho um pingo de cultura, sou um pobre diabo ignorante, burro pra cacete e inútil. Talvez elas tenham razão mesmo. Talvez eu seja mesmo inútil. Acho que o único que sentirá minha falta é o véio Tigre, dono do bar. Vai perder um clientão que deixava quase todo o salário para ele. Cedo ou tarde eu iria morrer de cirrose ou de câncer no pulmão mesmo. Não dá nada. Elas por elas. Se tiver vida após a morte como quase todo mundo acredita, pelo menos vou mudar de cenário e conhecer gente nova, ainda que acabe no inferno ou no umbral ou em qualquer outra porra de realidade alternativa, ou, na melhor das hipóteses, em lugar algum. Deixo a TV ligada. A possibilidade já é um recomeço. Adeus, Willian Bonner, boa noite!".
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Fato baseado num fato real.
MORAL DA HISTÓRIA:
O pedreiro é muito importante para a sociedade. Valorize-o.Não existe essa de 'descanse em paz', pelo menos, não para mim. Numa hipótese mais otimista, a vida continua e ninguém se livra ou esquece totalmente do que se é, faz, sente, deseja, pensa, imagina, projeta e vive. O negócio é encarar o que se é, como 'humano demasiado humano', entender que cagadas e merdas acontecem, que ninguém é santinho não, nem aqui nesse mundo físico, nem no mundo paralelo extrafísico aqui na Terra, mesmo! Somos seres em construção, e mesmo na pior situação, estamos, consciente ou inconscientemente, construindo versões melhores de nós mesmos para nós mesmos, em constante revolução e evolução, entre pedras, espinhos e flores no caminho. Não há nada à temer, nem lamentar, embora o medo faça parte de nossa vida, embora lamentamos quase todos os dias. O fato é que, gostemos ou não da alegoria, a vida é uma montanha russa, cheia de altos e baixos, sobe lentamente, vira de cabeça para o ar, dá vontade de vomitar, nos faz gritar, se cagar e se mijar de medo, mas também nos dá emoção, tesão, adrenalina, e desce. Desce, para e continua, sob um novo olhar, com outras pessoas, outras emoções. Só há duas coisas que nunca param em todos os universos possíveis: o Tempo e a Vida, por mais lentos que eles se movimentem, eles se movimentam.
"A vida é um processo complexo contínuo de criação, destruição, reconstrução e ressignificação."
E. E-Kan
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*– Camus, O Avesso e o Direito, A ironia - via Razão Inadequada
A Carta de suicídio de um jogador de futebol, na
Itália, REAL. Aqui
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